24/02/2010 20h19
POETA BOI DE COICE E POETA BOI DE CAMBÃO
Trecho de entrevista de João Cabral de Melo Neto, publicada no Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Sales.
Marly de Oliveira pergunta:
Uma coisa que impressiona é a sua memória e você ainda acha que ela não é mais a mesma. No entanto, tudo de que se lembra é com riqueza de detalhes. Por exemplo, houve um tio que lhe falou da diferença dos carros de boi de Pernambuco e do estado do Rio e você depois fez uma aproximação disse com a trajetória de alguns poetas. Como foi isso?
JCMN: Quem me falou dessa diferença foi meu tio-avô Diogo Cabral de Melo, que era juiz e chegou a desembargador no estado do Rio. Eu já o conheci aposentado, morando em Santa Teresa, quando vim para o Rio. Um dia ele me disse: "Em Pernambuco os carros de bois são puxados por duas juntas de bois e no Rio são puxados por três juntas". Pensei então em escrever um poema que falasse de "boi de coice" e "boi de cambão". Os bois de cambão são os que puxam o carro, os de coice são os que o freiam, quando ele está descendo uma ladeira. Eu pensava num poema que fosse uma tipologia geral. Por exemplo, Manuel Bandeira é um boi de cambão, o Schimidt é um legítimo boi de coice. Sartre é um boi de cambão, o Camus é um boi de coice. Não há superioridade de um sobre o outro. É uma questão de tipologia. Auden era boi de cambão, Eliot era boi de coice... Carlos Drummond, no princípio, era boi de cambão, acabou como boi de coice. Murilo Mendes tem pedaços de boi de coice e pedaços de boi de cambão. Walt Whitman era boi de cambão. Jorge Guillén é boi de coice. Dylan Thomas faz o possível para ser boi de cambão e só consegue ser boi de coice. Rimbaud é um misto, talvez o mais completo, de boi de coice e boi de cambão. Mallarmé é boi de cambão. Baudelaire é boi de cambão. Théophile Gautier é boi de cambão. Mário de Andrade é boi de cambão. Augusto dos Anjos é boi de coice. Proust, boi de coice. Valéry, boi de cambão. Isso, como você vê, não é questão de valor, mas de approach da realidade. Inclassificável é o Shakespeare, capaz de escrever a comédia mais engraçada e a tragédia mais trágica.
Publicado por Goulart Gomes
em 24/02/2010 às 20h19