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Literatura, História, Museologia e Numismática. Sítio de Goulart Gomes, o criador do Poetrix.
Textos
Saudação ao escritor Raimundo Gadelha, realizada no projeto Com a Palavra o Escritor, Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, Bahia, 18-05-2011.



Em Busca do Tempo de Raimundo Gadelha
ou
No Caminho do Ogan
 
 
 
Laroye, Exu!
 
Primeiramente eu gostaria de agradecer à Fundação Casa de Jorge Amado pelo convite realizado para apresentar o escritor Raimundo Gadelha, realizado por intermédio do poeta José Inácio Vieira de Melo, mais do que um amigo, um irmão, um dos muitos encontros felizes que a literatura me proporcionou nesta vida.
E apenas José Inácio poderia ter a sensibilidade de aproximar dois escritores com uma produção literária de tantas afinidades. Ao mergulhar na obra de Raimundo Gadelha, percebi em sua trajetória paralelos com a minha, na diversidade da sua produção, em seu ativismo cultural e na sua formação acadêmica.
É sempre um risco falar da obra de um autor, em sua presença. Podemos pecar por excesso ou por falta, por não termos a percepção correta dos seus escritos ou das suas intenções. Mas, enfim, como disse Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, “viver é perigoso”. Então, incumbido que fui desta tarefa, gostaria de me ater a três livros de Gadelha: “Em algum lugar do horizonte”, romance; “Um estreito chamado horizonte” e “Vida Útil do Tempo”, poesias, sem seguir uma ordem cronológica.
No romance “Em algum lugar do horizonte”, Gadelha trata do mais antigo dos temas universais: o Amor. E como que para validar o antigo aforismo “se não doer não tem graça”, ele nos fala de amores sofridos, irrealizáveis, impossíveis, dolorosos. São encontros e desencontros girando em torno de personagens passionais, divididos entre a possibilidade e o desejo, a coragem e a covardia, a dúvida e a paixão. Uma trama neorromântica, ambientada em um mundo globalizado, pós-moderno, de crises de identidade e de personalidade, que nos leva a reflexões pessoais: o que queremos para nós mesmos em uma relação a dois? Qual a nossa proposta ao decidirmos dividir a nossa vida com outrem? Quais os nossos limites pessoais diante dos impasses provocados por esse compartilhar de corpos, almas e emoções?  Com uma produção gráfica tão diferenciada que foi digna de uma premiação, “Em algum lugar do horizonte” se destaca não apenas pelo apuro editorial, mas também pela inovação ao tratar de um tema mais eterno do que recorrente.
O amor, Gadelha, se tece com a linha do horizonte.
 
 
 
Já “Um Estreito Chamado Horizonte” foi publicado há mais de 20 anos, pela editora Massao Ohno, em edição bilíngüe: em português e japonês. Concebido durante a sua permanência no Japão, a obra é ricamente ilustrada com fotografias produzidas pelo próprio autor.
Lá ele viria a conhecer a forma poética denominada TANKA, uma das mais populares do País do Sol Nascente, ao lado do haikai. O tanka é constituído de apenas uma estrofe, em cinco versos, com um máximo de 31 sílabas. Podemos considerá-lo como um haikai ampliado, ao qual seriam acrescidos aos três versos originais, com 5, 7 e 5 sílabas, respectivamente, mais dois versos, ambos com 7 sílabas.
Aqui gostaria de fazer um parêntese para comentar que já no primeiro contato com esta obra foi inevitável a lembrança de dois grandes poetas baianos, que já nos deixaram: Oldegar Franco Vieira, da Academia de Letras da Bahia, grande propagador da cultura nipônica no Brasil, e Damário Dacruz e seus poemas ilustrados, os fotopoemas.
“Um estreito chamado horizonte” é composto de dez seções: o lastro, o eu, o outro, o amor, o só, o triste, o urbano, o pensamento, o tempo e o espelho. As seções são, de certa forma, simbólicas, pois que toda a obra é homogênea e alguns tankas perpassam vários temas e abrem várias possibilidades interpretativas. Nele, tudo se encaixa, como na própria vida, da qual a obra é uma poética representação. Nela, Gadelha dialoga consigo mesmo e com os universos – interior e exterior.
Se em O Lastro ele afirma que “olho minhas mãos / e não estão vazias”, isto nos remete à seção seguinte, O Eu, intimista e autobiográfica, em que ele revisita a sua infância. E como sabemos que a infância nunca passa, dentro de nós, em O Tempo, Gadelha sintetiza muito bem esta nossa relação atemporal com a memória, ao dizer “Nunca perguntar / o que será amanhã / Aqui, agora / é só o que importa / digo sem acreditar.”
No Japão, distante da terra e das pessoas amadas, Gadelha não poderia deixar de ter refletida, nesta obra, a solidão, ainda que imerso na multidão. Nas seções O Outro, O Amor, O Só, O Triste, O Urbano, O Pensamento, ele une poesia e filosofia, algo habitual ao saber oriental com o qual conviveu, ao divagar sobre aquele seu momento de ilhamento e aprendizado. Daí afirmar que “a solidão é parte do preço da liberdade” e que o tempo é o “templo da saudade”, frase esta que daria título a um poema do livro “Vida Útil do Tempo”, do qual falarei a seguir.
Cercado por formalidades e de pessoas trajadas a rigor, Gadelha poeticamente conclui que “melhor que o terno é a ternura”. Será mesmo, Gadelha, que você “não conseguiu evitar o concreto”? Ora, seu nome é Raimundo e, segundo Drummond, por si só, uma solução. Se em O Espelho, última seção do livro, seus tankas são reflexões refletidas em retratos, hoje, nas estantes-álbuns dos seus leitores, é inútil que tentes “recolher meus pedaços espalhados no mundo”. Vasto mundo, com certeza contido em seu coração.
O horizonte, Gadelha, é um estreito que conduz ao infinito.
 
 
Passando do verso curto ao verso longo, vamos a “Vida Útil do Tempo”, livro de poesias publicado em 2004, por sua própria editora, a Escrituras, dividido em duas seções: “Amor e Tempo” e “Tempo e Memória”.
Fosse um objeto, este livro seria uma ampulheta, que marca não apenas a passagem do tempo, mas reflete em seu vidro as imagens, que em si própria é dupla, dúbia, gêmea. O amor é dual. “É impossível ser feliz sozinho”. Reflexos, refletir, reflexões... A obra é extremamente imagética e nos seus poemas quase podemos enxergar, como que fotografadas por uma máquina Polaroid, o instante da inspiração do poeta.
É assim com o homem que vê seu próprio rosto refletido no olho esquerdo do cavalo que agoniza.
Em “Refração”, um homem deseja atravessar o espelho, numa representação simbólica da busca de uma outra vida. Opostos. Em “Exercício”, “o rosto do velho amigo / oposto àquele rosto de menino”, informa que todos nós envelhecemos: o outro como espelho de si mesmo. “O copo, com água pura e cristalina, / refletido em suas lentes garrafais”...
 “Lentes embaçadas mostram a realidade diferente”. E novamente as lentes, no poema “Momentos em lentes espelhadas”: “o encanto da jovem ao ver, / nas lentes espelhadas dos óculos da pessoa à frente, / o avião” pilotado por um piloto com seus óculos Ray-Ban. Em “Espelhos”, numa metáfora ao encontro ele nos diz que “espelhos embaçam e embaçados são”.
Gadelha é dual e, então, pergunta: “como é possível, eu, do meu mundo, ver em seus olhos um outro mundo, ao mesmo tempo tão diferente e igual?”
Já na segunda parte do livro, é o Senhor Tempo quem predomina: Chronos e Cairós. Gadelha contempla, ao mesmo tempo, a sua brevidade e a sua eternidade. Se em “Instante” ele observa “nas paredes, rachaduras, / cicatrizes do tempo” em “Efêmero” ele alerta: “mergulha no tempo que lento escoa, / a mosca voa em breves círculos” e ratifica em “Átimo”: “formas, cores e sons formam lembranças / e a certeza de que, rápido, tudo passa”.
Sim, “tudo é apenas questão de tempo”. Mas esse tempo que passa é o mesmo que se eterniza, como Gadelha nos lembra em “Olhar”: “foi-se o tempo em que o rosto, encravado na pedra, julgou-se eterno!” e em “Palavras e pigmentos”, ao recordar “palavras retidas na moldura de um tempo”.
O tempo que passa e fica mesmo registrado nos objetos. Em “Resíduos residenciais” é uma geladeira que está ali, há tanto tempo. Em ‘Tristura’, “O peso do tempo dissolve a vela / transformando chamas em pingos de pesar”.
Mas, eu sei, meu tempo como apresentador está se acabando, e não posso roubar tempo do nosso convida. O tempo urge! Então, vamos dar tempo ao tempo, e dedicar um tempo ao ouvir o grande escritor Raimundo Gadelha. O tempo não pára e a Poesia é tão rara!
 
O tempo, Gadelha, é um amor se desvanecendo no horizonte.
 
Muito obrigado.

Goulart Gomes
Enviado por Goulart Gomes em 18/05/2011
Alterado em 09/09/2011
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